“Lost Girls”, destaque entre as estreias do Netflix nesta semana, poderia ser só mais um filme baseado em fatos reais que reconstitui acontecimentos mais inacreditáveis que a ficção.
A saga de Mari Gilbert, papel de Amy Ryan, uma espécie de mãe coragem que luta para desvendar o desparecimento da filha, oferece um esquema pronto para quem gosta de dramas temperados com mistério.
O molde de investigação adotado na trama, no entanto, não perde tempo com suspense. Identificar e deter o serial killer tem aqui menos importância do que retratar a teia de preconceitos, de incompetências oficiais e de moralismos que cerca a morte de jovens que trabalhavam para uma rede de prostituição.
Shannan, a garota desparecida, só aparece numa cena fugidia e num vídeo de quando era criança. Sua ausência, contudo, torna mais forte a luta da mãe para reencontrar a filha perdida.
A conotação moralista do termo “perdida” fica explícita com a revelação de que Shannan era uma profissional do sexo. Numa cena em que interage com as mães de jovens mortos que tiveram seus corpos encontrados à margem de uma estrada, Mari compara o uso das palavras na cobertura dos crimes pela mídia.
“Ele é policial, ele é catador de mariscos, bla-bla-blá. É tudo ‘ele, ele, ele’. E as nossas meninas? Quando falam sobre elas, usam as palavras ‘prostituta’, ‘garota de programa’, ‘ profissional do sexo’, ‘acompanhante’. Nunca ‘amiga’, ‘irmã’, ‘mãe’, ‘filha’.”
A bem-sucedida estratégia de “Lost Girls” enfoca o protagonismo de Mari, mulher sozinha que cuida de duas filhas adolescentes, uma delas com distúrbios psiquiátricos tal qual Shannan, que era bipolar.
Acusada de ter sido omissa e de ter abandonado a filha mais velha aos cuidados do Estado, Mari representa o papel complexo das mulheres sobrecarregadas de responsabilidades e que tem pouco a ver com as promessas do “empoderamento”.
A diretora Liz Garbus, estreante na ficção depois de uma frutífera experiência com documentários, inocula o material factual com um significado político.
Aqui, não se trata de um vago “olhar feminino”, mas de um ponto de vista próprio, marginalizado e muitas vezes confundido com “histeria”. Em mais de uma cena, por exemplo, os policiais e suspeitos se referem a Mari como “raivosa”, ou seja, “emocional”, “irracional”.
A opção de não promover a protagonista a heroína ou a vítima permite a “Lost Girls” se desvincular do imaginário da Mulher-Maravilha para representar mulheres despojadas dos adornos da ficção.
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